
Originalmente publicado em 15/10/2012 na página CRÔNICA DO DIA
A verdadeira evolução da espécie acontece quando aprendemos a fazer parte da multidão sem que percamos a individualidade. Ser só individualista é ruim. Mais uma ovelha no rebanho, péssimo. Encontrar o equilíbrio entre o coletivo e o individual, entretanto, não tem sido uma tarefa simples para o ser humano. A começar, é claro, pelo abandono do maniqueísmo que impossibilita este achado. Sem equilíbrio, como é ordinário acontecer, ou nos tornamos egoístas ou nos transformamos em gado.
A arte do meio-termo, infelizmente, não se acha nos manuais técnicos. Há manuais, decerto, e muitos datam de séculos. Alguns, aliás, desapareceram. Outros quase não chegaram às gerações futuras e, se ocorreu, estão distorcidos pela oralidade. Marcados na rocha e nos pergaminhos, apesar de sagrados – e da incontestável autoridade -, pouco trazem de pragmático no que se refere ao domínio humano do necessário equilíbrio entre o eu e os outros.
Para que servem tais instruções? Para dominar mediante a fascinação e o terror. A arte do meio-termo foi apagada ou, se menos do que isso, foi adaptada à hipocrisia dos poderosos.
Antes e depois da Revolução Francesa, existiram e existem reis e cleros. Depois, com a completa absorção do esclarecimento pelo despotismo, persistiram reis e cleros infinitamente reproduzidos em tipos móveis, em cores e via satélite. O rebanho na outra extremidade da fibra ótica. E as violas – belas violas – recheadas de bolores invisíveis embaixo de filigranas e arabescos feitos de ouro e nácar.
Penso nisto quando vejo excesso de transcendentalismo ou de religiosidade nas pessoas. Fico à espera daquela escorregada porque ninguém conserva a santidade por vinte e quatro horas. Nada mais falso. Nada mais vergonhoso. Nada mais abjeto! A melhor escolha é a sobriedade. Jamais levantar bandeiras insustentáveis. Relacionar-se discretamente com as crenças. Porque, sem demora, surge a contradição.
“Por fora, bela viola. Por dentro, pão bolorento”, diz a oralidade ancestral e, repentinamente, bloqueia-me a organização de técnicas.
Ora, quem sou eu para tais prescrições? Um punhado de átomos prestes a se dispersar? Um pastor de dúvidas. Um inocente receptáculo do nada sob o firmamento. É isso que sou, mas nem assim tenho direito de recomendar as regras do bem viver a quem quer que seja. E poderia?! Um naco diante dos séculos. O meu terror, apenas, é maior do que o mundo! Só porque sinto verdadeira gana de compensar o meu fim ordinário, teria o direito de usar esse conhecimento mágico e incerto acumulado em auxílio da espada e do cadafalso para ser alguém um pouco acima das cumeeiras?
Há perigo em supervalorizar o exterior quando não se dá conta de fazer com que o interior acompanhe. Não dá para competir! Melhor fugir aos vexames. Por que poucos, na história da humanidade, conseguiram se garantir externa e internamente.
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Texto publicado em 15/10/2012 no CRÔNICA DO DIA.
Texto publicado em 31/10/2012 no Bandeirantes Online.
André Ferrer (2012) – A reprodução do texto é livre desde que o autor seja referenciado. “Escrever custa tempo, educação e trabalho. Respeite isso.”